O que animou os mais de quinze anos de pesquisa em localidades remotas do interior do país e os esforços empreendidos na elaboração de análises linguísticas consistentes, cujo grande corolário é o livro O Português Afro-Brasileiro, foi resgatar a história linguística da grande maioria da população brasileira. Apesar de serem os protagonistas da construção das riquezas do país e do seu patrimônio cultural, esses brasileiros sempre foram discriminados e excluídos, tendo a sua voz calada ou recalcada pelo preconceito que se renova a cada dia, como um mecanismo poderosíssimo de dominação política e ideológica da maioria da população por uma minoria que envida todos os esforços para legitimar como única voz digna aquela que se submeta aos ditames da língua da ex-metrópole. Mesmo à custa de cultivar um profundo complexo de inferioridade linguística, porquanto os modelos de uso do português europeu são, em muitos aspectos, estranhos à realidade de uso da língua no Brasil, a submissão ao cânone coimbrão constitui uma alternativa histórica das classes dominantes brasileiras para engendrar um poderoso mecanismo ideológico de dominação e exclusão social, dirigindo toda a energia discricionária do preconceito para as marcas linguísticas mais notáveis do caráter pluriétnico da sociedade brasileira.
As análises que compõem o livro buscam individualizar os padrões de fala vernácula observados nas comunidades rurais afro-brasileiras isoladas como uma variedade específica no universo sociolinguístico do Brasil. A denominação português afro-brasileiro ganha sentido quando se identificam as características linguísticas e os traços sócio-históricos que particularizam tal variedade, mesmo no cenário já marcado da norma popular brasileira. Que características linguísticas destacam as comunidades afro-brasileiras isoladas do conjunto das comunidades de fala popular do interior do país? Que particularidades sócio-históricas possibilitaram a emergência de tais propriedades individualizadoras? Tais propriedades permitem vislumbrar processos pretéritos e localizados de crioulização do português no Brasil? Em que medida tais processos de variação e mudança induzidos pelo contato se espraiaram para o conjunto de variedades que vieram a conformar o português brasileiro como uma variedade linguística notavelmente distinta do português europeu? E atualmente, como se comportam essas comunidades de fala no bojo dos processos sociolinguísticos em curso no interior do país? Essas são as principais questões abordadas no livro.
Ao reunir evidências consistentes sobre as relações históricas entre polarização sociolinguística do Brasil e o caráter pluriétnico de sua população, com base na descrição sistemática da gramática de um de seus segmentos mais marginalizados historicamente, as comunidades rurais afro-brasileiras isoladas, o livro se integra nas efetivas ações afirmativas de reparação histórica, contribuindo para resgatar a legitimidade da fala popular brasileira em seu caráter pluriétnico. Ao ampliar o conhecimento sistemático acerca da realidade linguística de setores tão marginalizados da sociedade, fornece subsídios para a elaboração de políticas públicas nas quais o ensino de língua portuguesa se ajuste mais à realidade da diversidade da língua, tornando-se mais eficaz e democrático. Mas esta pesquisa visa, sobretudo, a desarmar o preconceito linguístico, diminuindo os seus nefastos efeitos discricionários. Esses são objetivos deste livro, que constitui a primeira grande descrição de conjunto do que se denomina português afro-brasileiro.
Livro disponível para download no Portal SciELO Livros:
http://books.scielo.org/id/p5