A situação linguística do Brasil na atualidade é paradoxal. Por um lado, o Brasil é um dos países de maior homogeneidade linguística do mundo, pois cerca de 98% da sua população tem o português como língua materna, sendo a imensa maioria monolíngue. Por outro lado, o Brasil é um dos países que exibe a maior diversidade linguística do planeta, com pelo menos 160 línguas indígenas de várias famílias linguísticas tipologicamente diferenciadas e cerca de 50 línguas de imigração, que incluem comunidades tradicionais falantes de variedades do italiano, do alemão, do japonês, do polonês e do ucraniano, bem como de diversas outras línguas de imigração mais recentes, como o coreano, o chinês, o espanhol sul-americano e o crioulo haitiano (LUCCHESI, 2020). Ainda compõem essa riqueza idiomática do Brasil alguns falares rituais de vocabulário iorubá e ewe, utilizados em religiões de matriz africana, e línguas secretas de vocabulário quimbundo, ainda utilizadas por falantes de comunidades rurais afro-brasileiras, como as do Cafundó, em São Paulo, e de Tabatinga, em Minas Gerais.
Porém, toda essa diversidade é apenas um pálido retrato da grande riqueza linguística que já existiu no Brasil. Quando começou a colonização portuguesa, nas primeiras décadas do século XVI, eram faladas no território brasileiro mais de mil línguas indígenas, e, entre 1550 e 1850 aproximadamente, o tráfico negreiro trouxe para o Brasil quase 5 milhões de africanos, que falavam até mais de 200 línguas diferentes (PETTER, 2006). O genocídio dos povos indígenas, que infelizmente ainda está em curso com ação, dos grileiros, garimpeiros ilegais e traficantes de madeira na Amazônia, é responsável pela redução do número de línguas originárias do Brasil a cerca de 15% do que eram antes da colonização portuguesa (RODRIGUES, 1986, 1993). E o fato de nenhuma língua africana ter subsistido no Brasil é o testemunho linguístico da atroz violência física, psicológica e cultural da escravidão.
...Portanto, a história sociolinguística do Brasil pode ser definida essencialmente como um violento processo de homogeneização linguística, no qual a língua do colonizador português se impôs, apagando as línguas dos povos subjugados e escravizados (LUCCHESI, 2015, 2017). A polarização sociolinguística do Brasil, na atualidade, é um reflexo desse processo, pois a língua da elite letrada, hegemonicamente branca, ainda é fortemente influenciada pelos modelos linguísticos da ex-metrópole portuguesa, enquanto a língua da maioria da população trabalhadora, majoritariamente preta e parda, ainda guarda os resquícios de suas origens africanas e indígenas.
Conhecer a história sociolinguística do Brasil é importante, não apenas para compreender sua realidade linguística atual, mas para compreender também toda a sociedade brasileira, com sua absurda concentração de renda, marginalização social, violência urbana e racismo estrutural. Muito do que é a sociedade brasileira hoje se explica pelo fato de que ela é historicamente estruturada com base no extermínio dos povos indígenas na escravidão africana. E a história linguística reflete todo esse terrível processo histórico. Dessa forma, estudar a história linguística do Brasil é uma forma de iluminar o próprio processo de formação da sociedade brasileira.
Conquanto houvesse um imenso mosaico de muitas centenas de línguas indígenas no interior, os povos que habitavam a costa do Brasil falavam variedades da língua tupi, o tupiniquim e o tupinambá, muito semelhantes entre si, tanto que os colonos e missionários portugueses se referiam a essas variedades como uma única língua, a que chamaram língua geral da costa do Brasil. Essa língua geral indígena foi a língua de intercurso entre portugueses e nativos no período inicial da colonização, mas é preciso distinguir dois cenários sociolinguísticos no Brasil colonial dos séculos XVI e XVII.
O primeiro cenário sociolinguístico predominou em São Paulo, onde se instalou o primeiro foco de colonização portuguesa no Brasil, com a fundação da Vila de São Vicente, no litoral, em 1532. Após se estabelecer no litoral, os colonizadores seguiram para o interior, subindo o planalto paulista e fundando uma nova vila, que viria a dar origem à atual cidade de São Paulo. À sujeição da população indígena local seguiu-se o aprisionamento dos povos indígenas das regiões vizinhas, mobilizando grandes expedições denominadas Bandeiras. No plano sociolinguístico, o reduzido contingente de portugueses, em sua imensa maioria homens, possibilitou um amplo processo de miscigenação, do que resultou a formação de uma sociedade com uma forte presença de filhos de colonizador português com mulher indígena, tradicionalmente chamados mamelucos, que falavam uma variedade da língua tupiniquim, um tanto quanto alterada em função do novo contexto colonial (RODRIGUES, 2006). Esse processo se reproduziu em vários pontos da costa brasileira, como o sul do Estado da Bahia, recebendo sempre essa variedade a denominação de língua geral (ARGOLO, 2013).
Com a expulsão dos franceses de São Luís, em 1615, o tupinambá se tornou de uso corrente na sociedade colonial que os portugueses estabeleceram inicialmente no Maranhão e expandiram para a região amazônica, em busca das especiarias da selva e do apresamento de novos povos indígenas, em sua maioria falantes de línguas diversas, inclusive de outras famílias linguísticas, distintas da família tupi-guarani, nomeadamente as famílias aruak e karib. Assim, a língua de intercurso que viria a predominar na colonização da Amazônia seria essa variedade crescentemente alterada do tupinambá, que, com a denominação de nhengatu (lit. ‘língua boa’), acabou por se nativizar entre povos indígenas da região e até hoje é a língua materna de algumas localidades do Alto Amazonas (RODRIGUES, 2006).
A língua geral foi predominante no Estado de São Paulo até os finais do século XVII (SILVA NETO, 1963[1951]), porém a descoberta de ouro e diamantes na região vizinha, onde fica hoje o Estado de Minas Gerais, promoveu um grande afluxo de colonos portugueses, ao longo do século XVIII, os quais expulsaram os antigos paulistas para o centro-oeste do Brasil, reduzindo drasticamente o uso da língua geral paulista, no Sudeste. No Maranhão e no Pará, no norte do Brasil, a língua geral de base tupinambá se conservou por muito mais tempo, tanto que o governo português do Marquês de Pombal publicou um decreto, proibindo o seu uso, no ano de 1755, mas a língua geral amazônica só viria a entrar em franco declínio ao longo do século XIX (FREIRE, 2004).
Por outro lado, nas regiões mais dinâmicas do Brasil Colonial, como o entorno das vilas de Olinda e Salvador, no Nordeste do Brasil, nos séculos XVI e XVII, a população indígena local foi rapidamente dizimada, sendo logo substituída por largos contingentes de escravos importados da África, constituindo o segundo cenário sociolinguístico do Brasil colonial. Esse cenário foi, em termos demográficos, bem mais representativo que o primeiro, pois a principal força motriz do empreendimento colonial português no Brasil foi a mão de obra dos africanos escravizados e seus descendentes, denominados crioulos; tanto que o chamado tráfico negreiro se tornou uma das atividades comerciais mais lucrativas durante todo o período colonial e em boa parte do período do Império.
Embora tenha sido, durante bastante tempo, muito pouco visível, em função da violência, não apenas física, mas, sobretudo, simbólica, inerente ao processo de escravidão (MATTOSO, 2003), a presença africana constitui um dos componentes fundamentais na formação da sociedade brasileira, nos mais diversos setores da atividade social e da cultura, com forte influência na religião, na culinária, na música, na dança, e também no plano da língua, tendo os africanos e seus descendentes desempenhado um importante papel na “europeização” linguística do Brasil (RIBEIRO, 1995, p. 166).
Não apenas no Brasil, mas em todo o processo de colonização da América, entre os séculos XVI e XIX, a importação de largos contingentes de mão de obra escravizada da África foi crucial. Estima-se que, ao longo de mais de três séculos, o tráfico negreiro trouxe para o continente americano cerca de dez milhões de africanos. A participação desse contingente na formação das nações que vieram a se constituir no novo continente foi significativa, não obstante a já referida opressão na qual se buscava apagar a identidade cultural e linguística do escravo africano. Em vários planos da cultura, como a religião, a música e a culinária, a contribuição dos africanos é indelével.
No plano linguístico, a contribuição africana se destaca pela emergência de línguas crioulas, na região do Caribe, em sociedades formadas a partir de grandes propriedades agroexportadoras que empregavam largamente a mão de obra escravizada, denominadas plantações. Dentre as mais de trinta línguas crioulas que se formaram na região, encontram-se o haitiano, cujo léxico é de origem francesa, e o jamaicano, de base lexical inglesa, além do papiamento, em Curaçao, e o sranan e o saramacan, no Suriname.
Calcula-se que o destino de quase a metade dos africanos trazidos para o continente americano tenha sido o Brasil, o que corresponde a quase cinco milhões de indivíduos. Em sua maioria, eram provenientes da região de Angola e da região que atualmente corresponde à Nigéria e ao Benin. Da primeira região vieram os falantes das línguas banto, principalmente o quimbundo, o quicongo e o umbundo. Da segunda região, vieram os falantes das línguas kwa, majoritariamente o iorubá, o ewe o fon. Os escravizados provenientes de Angola eram levados para Pernambuco e principalmente para o Rio de Janeiro, que se tornou o principal porto do Brasil, a partir do século XVIII. Do Rio de Janeiro, eram distribuídos para o resto do Brasil, exceto a Bahia, que importava a maioria dos seus africanos da Costa da Mina, com larga predominância dos falantes do iorubá, tanto que essa língua ainda era falada entre a população pobre de Salvador, até o início do século XX. Entretanto, assim como em todo o continente americano, nenhuma língua africana subsistiu no Brasil, em função da violenta repressão linguística e cultural que os escravizados sofriam (LUCCHESI, 2009, 2015, 2017).
Até meados do século XIX, aproximadamente dois terços da população do Brasil era constituída por índios, africanos e seus descendentes – ou seja, só um pouco menos de um terço daqueles que formaram a sociedade brasileira eram falantes nativos do português filhos de falantes nativos da mesma língua. A partir do século XVII, os africanos e seus descendentes, incluindo os mestiços, denominados mulatos, predominaram na população do Brasil, tanto que, em 1850, africanos, crioulos e mulatos correspondiam a 65% do total da população. Esse contingente formou, quase que exclusivamente, a mão de obra das lavouras de cana-de-açúcar, fumo e algodão do Nordeste, entre os séculos XVII e XIX, da extração de ouro e pedras preciosas em Minas Gerais, no século XVIII, e das fazendas de café do Vale do Paraíba e do Planalto Paulista, no século XIX. O tráfico negreiro só cessou em 1850, e a escravidão africana só foi abolida em 1888. Até o início do século XX, a grande maioria dessa massa de afrodescendentes vivia no campo e era iletrada (LUCCHESI, 2015, p. 85-94).
Desde o tráfico da África para o Brasil, os escravizados eram misturados para evitar a articulação de revoltas. No Brasil, essa prática se reproduzia, já que os africanos eram impedidos de usar suas línguas nativas, e suas práticas culturais e religiosas eram igualmente reprimidas (MATTOSO, 2003). Os escravizados eram, então, forçados a usar o português até para se comunicarem entre si. Entretanto, a aquisição do português era limitada, porque o acesso aos modelos de português era restrito, e, na maioria das situações, os africanos não tinham também interesse em adquirir uma grande proficiência em português. Essa segunda língua tornava-se, então, um código restrito de comunicação interétnica, com uma estrutura gramatical limitada e muitas vezes decalcada das línguas nativas dos africanos, o que se denomina um pré-pidgin (SIEGEL, 2008). Mesmo assim, esse português alterado ia se tornando a língua materna dos filhos dos africanos. Tal processo de transmissão linguística irregularpode levar à formação de uma língua qualitativamente distinta, denominada língua crioula. É possível que línguas pidgins ou crioulas tenham se formado no Brasil, sobretudo no século XVII. Entretanto, essas línguas tiveram uma vida efêmera e não deixaram testemunhos históricos (LUCCHESI, 2009, 2019).
As razões para que não tenham ocorrido processos duradouros e representativos de pidginização e crioulização do português no Brasil são as seguintes (LUCCHESI, 2009, 2019):
Essas condições impediram a formação de pidgins e crioulos no Brasil, mas não impediram as alterações que vão separar a variedade de português dos descendentes de índios e africanos do português lusitanizado da elite colonial e do Império. Assim, um português dividido vai-se tornando a língua hegemônica da sociedade brasileira (LUCCHESI, 2015, 2017).
O português começa a avançar de forma mais ampla no território brasileiro no século XVIII, com a descoberta de grandes mananciais de ouro e pedras preciosas na região do atual Estado de Minas Gerais. O afluxo de colonos portugueses e a importação de escravos aumenta enormemente, de modo que a população do Brasil cresce onze vezes nesse século, passando de pouco mais de trezentos mil habitantes, em 1700, para três milhões e trezentos mil, em 1800. O avanço da língua portuguesa prossegue no século seguinte, com a transferência da corte portuguesa para o Brasil, em 1808. O tráfico de africanos escravizados é proibido definitivamente em 1850, acabando com a principal fonte do multilinguismo no Brasil. A abolição da escravidão ocorre em 1888, e a fonte de mão de obra para a lavoura passa a ser alimentada pela entrada no país de mais de três milhões de imigrantes provenientes da Europa e da Ásia, entre as últimas décadas do século XIX e a primeiras décadas do século XX.
Contudo, até a primeira fase da república, que se inicia em 1889, o Brasil continua sendo um país rural agroexportador, sendo o café o principal produto de exportação do país. Em 1900, cerca de noventa por cento da população vive no campo, dois terços são desdentes de índios e africanos e pelo menos três quartos são analfabetos (LUCCHESI, 2017). Nessas condições, a divisão linguística do país mantém-se profunda, separando a maioria da população que fala um português muito alterado por mudanças decorrentes do contato linguístico, e a língua da elite, que vai buscar em Portugal os modelos para o bon usage da língua (FARACO, 2008).
Essa situação mudará, a partir da Revolução de 1930, com a derrota das oligarquias rurais e o início da industrialização e urbanização do país. Ao longo do século XX, a população do Brasil se torna majoritariamente urbana, com oitenta por cento dos brasileiros vivendo nas grandes cidades, no ano de 2000. A urbanização favorece a inserção dos segmentos provenientes do campo no mercado consumidor e no universo do letramento (FARACO, 2008). Entretanto, as características do desenvolvimento tardio e dependente do capitalismo no Brasil vai fazer com que essa inserção seja precária e parcial. Assim, muitas das marcas da linguagem rural permanecem na fala da população pobre que vive nas periferias das grandes cidades. Portanto, embora a urbanização ocorrida a partir de 1930 tenha diminuído os feitos do contato entre línguas no português popular, muitas alterações ainda persistem, separando a linguagem da população socialmente marginalizada da língua culta da elite letrada do país, no que se denomina polarização sociolinguística do Brasil.
A identificação dos efeitos do contato entre línguas na formação histórica do português popular brasileiro constitui um dos principais campos de investigação da Linguística no Brasil, e as pesquisas desenvolvidas no Projeto vertentes tem dado uma significativa contribuição para os avanços dos estudos nesse campo.
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