As pesquisas desenvolvidas atualmente no Projeto Vertentes têm por meta, por um lado, produzir subsídios para o debate sobre a atualização da norma padrão, um tema central na pauta da pesquisa linguística no Brasil. Por outro lado, os potenciais resultados das análises desenvolvidas poderão iluminar a realidade sociolinguística do país, capturando a correlação da estruturação da língua com aspectos centrais que estruturam historicamente a sociedade brasileira: a concentração de renda, a superexploração do trabalho, a marginalização e a violência social e o racismo estrutural. A revelação dos reflexos desses aspectos cruciais no plano da língua poderá contribuir com o processo de superação do preconceito linguístico e das injustiças sociais.
...Embora a pesquisa sociolinguística tenha se direcionado, em boa medida, neste século, para as questões identitárias e de gênero, no bojo do que se denominou terceira onda da Sociolinguística (ECKERT, 2012), grandes questões relativas a uma abordagem mais ampla e globalizante da realidade sociolinguística do Brasil ainda carecem de uma resposta satisfatória. Dentre essas questões, podem ser destacadas as seguintes:
Conquanto sejam absolutamente legítimas e pertinentes as pesquisas sociolinguísticas que focalizam grupos sociais específicos e/ou minoritários, girando em torno de questões identitárias, no bojo de todo um movimento intelectual e ideológico que caracteriza o que se tem denominado pós-modernidade, a pesquisa desenvolvida no Projeto Vertentes se filia a uma tradição mais racional do conhecimento, que não descura das grandes questões, nem abdica das grandes narrativas, buscando alcançar generalizações, com uma sólida fundamentação empírica, que possibilitem uma apreensão mais globalizante da realidade sociolinguística do país.
Com essa perspectiva, um grande produto da pesquisa atualmente em curso no projeto Vertentes será uma ampla análise sociolinguística da elite letrada de uma das mais importantes cidades do país, buscando identificar o efeito da massificação do ensino superior ocorrida nas últimas décadas sobre a chamada norma culta. Isso só será possível com a observação da variável social nível de escolaridade dos pais dos informantes com curso superior completo. Trata-se de um procedimento metodológico que possibilitará a descrição do comportamento de um conjunto crescentemente representativo de indivíduos que são os primeiros de suas famílias a obter um diploma do ensino superior. Esse processo social terá certamente um impacto sobre a norma culta, concebida como práxis linguística da elite letrada. Mensurar, de alguma maneira, esse impacto será uma das contribuições desta pesquisa para o avanço do conhecimento no campo.
Por outro lado, a distinção dos informantes por sua etnia, distinguindo pretos e pardos de brancos, constitui uma outra inovação significativa. As políticas institucionais de reparação histórica, como as cotas na universidade, partem do pressuposto de que existem marcadores sociais que obstaculizam o desenvolvimento dos indivíduos pretos e pardos na escola e no mercado de trabalho. Nesse sentido, é da mais alta relevância que se desenvolvam pesquisas que procurem identificar, com base empírica consistente, a existência de marcadores sociolinguísticos ligados à etnia do indivíduo.
Outros avanços que a pesquisa em curso no Projeto Vertentes pode proporcionar dizem respeito ao enfrentamento do problema da avaliação (WEINREICH; LABOV; HERZOG, 2006[1968]). Nesse sentido, a grande inovação é a gravação de uma entrevista casual e de uma exposição formal com os mesmos indivíduos. Praticamente todos as amostras linguísticas dos projetos de pesquisa sociolinguística no Brasil se restringem à gravação da fala mais informal. A gravação da fala informal e formal dos mesmos indivíduos fornece uma base empírica consistente para analisar a variação estilística com falantes da elite letrada, elicitando dados cruciais para a identificação do valor simbólico associado às formas em concorrência na língua, pois na fala mais monitorada, o falante busca empregar as formas linguísticas mais valorizadas socialmente.
Nessa mesma linha, outro grande avanço está ligado aos testes de avaliação subjetiva. Poucas pesquisas sociolinguísticas têm aplicado esse tipo de teste e, quando o fazem, geralmente focalizam apenas uma variável linguística. A aplicação de testes que contemplam um grande número de variáveis linguísticas, em um conjunto significativo de informantes, fornecerá dados valiosos para iluminar a forma como a elite letrada avalia as formas atualmente em variação na língua. Será igualmente significativo ter dados empíricos sobre a real consciência dos falantes cultos sobre formas prescritas pela tradição gramatical que já não são mais de uso corrente, mesmo nesse segmento altamente letrado.
Por outro lado, o grande avanço que também se espera com esta pesquisa é a verificação empírica do algoritmo da polarização sociolinguística. Esse algoritmo define, em bases teóricas muito precisas, através do conceito de norma sociolinguística, a oposição entre uma norma culta e uma norma popular, gerando hipóteses que podem ser falseadas pelos dados empíricos, dentro da perspectiva popperiana, que tem se mostrado de grande validade em diversos ramos da ciência moderna (LUCCHESI, 2015). Infelizmente, o algoritmo da polarização sociolinguística tem sido pouco empregado nas pesquisas sociolinguísticas no Brasil, que, em grande parte, se contentam em apresentar os resultados das variáveis sociais de forma atomística e isolada, não arriscando sequer um diagnóstico nos termos da dicotomia variação estável e mudança em progresso. Portanto, a produção de um conjunto de análises variacionistas orientadas por uma visão globalizante da realidade sociolinguística do país, testando de forma consistente hipóteses sobre a oposição entre a práxis linguística da elite letrada e das classes populares na cidade de Salvador, constituirá, certamente, um avanço significativo para as pesquisas no campo da Sociolinguística no Brasil.
Referências BibliográficasECKERT, Penelope. Three waves of variation study: the emergence of meaning in the study of sociolinguistic variation. Annual Review of Anthropology, 41, 2012, p. 87-100.
LUCCHESI, Dante. Língua e Sociedades Partidas: a polarização sociolinguística do Brasil. São Paulo: Contexto, 2015.
WEINREICH, Uriel; LABOV, William; HERZOG, Marvin. Fundamentos empíricos para uma teoria da mudança linguística. São Paulo: Parábola, 2006[1968].