Desde que uma versão escrita dos textos orais tornou-se uma necessidade para a consecução da análise linguística – particularmente no plano da morfossintaxe –, tem-se colocado a questão de como reduzir à substância escrita textos produzidos no plano da oralidade [1]. A transcrição fonética, além de muito onerosa, não se apresenta como a melhor solução para a constituição do suporte para a recolha das formas a serem analisadas. As análises variacionistas normalmente pressupõem o levantamento exaustivo das ocorrências do fenômeno variável em foco no conjunto das entrevistas que compõem o universo de observação da análise [2]. Assim, é necessário que o analista trabalhe com um texto de leitura mais acessível, o que faz da transcrição grafemática ou ortográfica o melhor procedimento.
...A transposição para a substância gráfica de textos produzidos originalmente através de ondas sonoras coloca naturalmente uma série de problemas, particularmente a decisão sobre o que registrar e o que não registrar, partindo do princípio de que, mesmo no caso da transcrição fonética, é impossível capturar todos os elementos constitutivos do texto oral. Nesse sentido, a definição dos critérios de transcrição a serem adotados deve estar subordinada aos objetivos da análise que se vai realizar. Alguns sistemas de transcrição, por exemplo, buscam mensurar as pausas realizadas, indicam o prolongamento de vogais, ou mesmo um padrão prosódico ascendente ou descendente. No caso do Projeto Vertentes, em que as análises se circunscrevem ao nível estrutural da morfossintaxe, esses expedientes seriam supérfluos. Em face disso, o parâmetro básico adotado foi o de proporcionar o máximo de inteligibilidade ao texto escrito.
Desprovido dos elementos inerentes ao texto oral, tais como a entoação, a expressão facial, os gestos e todos os elementos pragmaticamente compartilhados no momento da interação verbal, o texto resultante de uma transcrição torna-se, em muitas passagens, ininteligível. E o sentido dessas passagens, muitas vezes, não é recuperado mesmo com o recurso à audição do texto oral. Dessa forma, não é fácil conferir inteligibilidade a um texto transcrito, e no geral o registro automático das pausas que ocorrem durante a ilocução tende a comprometer ainda mais a inteligibilidade do texto transcrito. Além disso, é importante marcar, para o tipo de análise que se tem feito no Projeto Vertentes, as fronteiras das estruturas sintáticas. Por exemplo, é importante indicar se uma oração adverbial ou um sintagma preposicionado está encerrando um período ou encetando o seguinte. É claro que isso depende da interpretação de quem transcreve; e, muitas vezes, essa interpretação não é possível contando apenas com o recurso à audição da entrevista. De qualquer forma, uma transcrição que se funda nessa sinalização da estrutura sintática do texto oral revelou-se a mais eficaz para conferir inteligibilidade ao texto transcrito e a mais profícua para a análise que se tem realizado no âmbito do Projeto Vertentes.
Com base nesse princípio, adotou-se um sistema de pontuação canônico na transcrição do texto, o que implica a abstenção dos registros de pausas que não tivessem uma função sintática. A vírgula, por exemplo, só deve ser usada para indicar uma pequena pausa, se essa pequena pausa destaca um adjunto adverbial ou um tópico, por exemplo. Dessa forma, uma pausa que separa o sujeito do verbo não é registrada por qualquer sinal. O ponto foi usado para fazer a delimitação dos períodos que se podiam depreender naquele ato ilocutório, e não para registrar uma pausa maior. O único recurso de pontuação excepcional adotado foi o uso das reticências para indicar: hesitações, repetições e quebras no encadeamento sintático, dentre outros fatos característicos da oralidade.
Por outro lado, buscou-se também, com o sistema de transcrição adotado, registrar todos os fatos linguísticos que se observam na fala do informante e que constituem marcas específicas do seu dialeto, particularmente no plano da morfossintaxe, tais como: o uso variável das regras de concordância nominal e verbal e a omissão de preposições, artigos, complementizadores, etc. Além disso, foram definidos expedientes para registrar trechos de audição incerta, realização inusitada de uma palavra ou expressão e a ocorrência de alguma palavra desconhecida. Uma série de fatos no nível fônico também foi registrada, ao passo que se optou por não registrar uma série de outros fatos amplamente gerais na variação fônica da língua. Todas essas decisões foram sistematizadas em uma Chave de Transcrição que tem orientado os trabalhos de transcrição do conjunto de entrevistas que compõem os acervos de fala vernácula do português popular constituídos no âmbito do Projeto Vertentes.
Baixe a Chave de Transcrição do Projeto Vertentes em .pdf...
NOTAS[1] Durante alguns anos, os pesquisadores do Projeto de Estudo da Norma Urbana Culta, o Projeto NURC, buscaram realizar as suas análises sem o recurso à transcrição, eliciando as formas a serem analisadas diretamente da audição das entrevistas. Porém, tal método se mostrou inviável em termos práticos.
[2] No caso de algumas variáveis muito recorrentes (como a realização do sujeito pronominal, por exemplo), adota-se o procedimento de levantamento por cota. Nesse caso, define-se um número de ocorrências que deve ser eliciado em cada entrevista. A recolha continua sendo exaustiva, só que se restringe à porção da entrevista que contém o número de ocorrências definido.