A relevância do estudo da norma urbana culta

Os textos que fundamentam o Projeto NURC, Projeto de Estudo da Norma Urbana Culta, o primeiro grande projeto coletivo da pesquisa linguística no Brasil (CALLOU, 1999), já chamavam a atenção para a importância do estudo dos padrões de comportamento linguístico da elite letrada das grandes cidades brasileiras, o que denominaram norma urbana culta. Essa variedade linguística de uma grande sociedade capitalista contemporânea ocuparia uma posição crucial no desenvolvimento histórico da língua, porque, em função das relações sociais e representações ideológicas, essa norma seria a mais difundida, influenciando sobremaneira as demais variedades linguísticas em todas as regiões de um vasto país continental. A norma urbana culta é a variedade que predomina nos meios de comunicação de massa, tanto na modalidade escrita, quanto falada; é a variedade empregada na escolarização, onde esta funciona em condições razoáveis, e também predomina nas manifestações da arte voltada para as classes médias e altas, assim como em programas de grande apelo popular, como as telenovelas.

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Em um equacionamento mais recente da realidade sociolinguística do país, Lucchesi (2015) identifica como um dos mecanismos da polarização sociolinguística do Brasil um processo de nivelamento linguístico, no qual as variantes linguísticas usadas pela elite letrada das grandes metrópoles se difundem para os demais segmentos sociais e para todas as regiões do país, através da ação dos meios de comunicação de massa, do sistema de ensino e do deslocamento populacional. Dessa forma, o estudo da norma urbana culta seria crucial para a compreensão das tendências de mudança predominantes na língua, sendo um ponto privilegiado para iluminar o conjunto da realidade sociolinguística do país.

Por outro lado, a violenta concentração de renda e maPor outro lado, a norma culta também forneceria, em princípio, os modelos para a formatação da norma de referência linguística, ou norma padrão. Considerando a tensão histórica entre a norma culta e a norma padrão – agravada no Brasil, com a adoção, desde o final do século XIX, de um padrão normativo adventício, importado da ex-metrópole portuguesa (FARACO, 2008; LUCCHESI, 2015) –, a descrição da norma culta seria indispensável para uma necessária atualização da norma de referência linguística no Brasil, em vista da crescente divergência entre o que prescrevem as gramáticas normativas e o efetivo uso da língua por parte de juristas, professores, jornalistas e todo o conjunto de profissionais liberais e intelectuais do país. Tentar identificar as tendências de mudança preponderantes na língua e fornecer a fundamentação empírica para uma atualização da norma padrão foram objetivos que estavam no cerne da proposta de criação do Projeto NURC, nos finais da década de 1960 e início da década de 1970.

Embora não tenha avançado muito em termos de análises coordenadas desenvolvidas pela sua equipe original, o Projeto NURC promoveu um expressivo avanço da pesquisa linguística no Brasil, com um sem-número de teses, dissertações comunicações em eventos científicos e artigos em periódicos especializados, com base nas amostras de fala constituídas em sua pesquisa de campo. Suas amostras de fala também forneceram a base empírica para expressivos projetos coletivos de pesquisa que elaboraram importantes descrições da norma culta falada, como a Gramática do Português Falado e a Gramática do Português Culto Falado no Brasil. Porém, não há um conjunto sistematizado de análises da norma culta, realizado com base no instrumental teórico e metodológico da Sociolinguística Variacionista, que possa fornecer dados empíricos quantificados, para fundamentar alterações na normatização linguística no país.

Nos últimos anos, linguistas brasileiros têm elaborado gramáticas e manuais pedagógicos que buscam se adequar à atual realidade língua portuguesa no Brasil (PERINI, 2010; CASTILHO, 2010; BAGNO, 2012; VITRAL, 2017; VIEIRA; FARACO, 2022). Contudo, ainda faltam descrições sistemáticas que forneçam uma fundamentação empírica consistente para a elaboração de gramáticas da norma de referência linguística compatíveis com os efetivos usos linguísticos da elite letrada brasileira em situações formais de comunicação verbal e considerando também os valores que os falantes ditos cultos atribuem às formas em variação na língua. A necessidade de cumprir essa lacuna tem-se refletido na agenda linguística com a implementação pesquisas que têm retomado o estudo da variação nos padrões de uso da língua pela elite letrada do país (e.g. VIEIRA, 2018). Em sua 4ª Etapa, o Projeto Vertentes vem se juntar a esse esforço da pesquisa linguística no Brasil para se instrumentalizar e enfrentar, com uma boa fundamentação, o debate mais amplo acerca da necessidade de uma revisão da norma padrão brasileira.

A normatização da língua no Brasil tem gerado profundas contradições desde o final do século XIX, ao se consagrar um modelo de correção gramatical com base nos padrões de uso da língua na ex-metrópole portuguesa, como parte de um projeto racista e excludente de poder das classes dominantes brasileiras (FARACO, 2008; LUCCHESI, 2015). No século XX, lamentavelmente, filólogos e linguistas de orientação estruturalistas forneceram subsídios “científicos” que contribuíram para a continuação dessa tradição purista e adventícia, alimentando um complexo de inferioridade e um pesado sentimento de insegurança linguística entre os brasileiros, sobretudo os mais letrados, que se traduz em afirmações proverbiais do tipo “o português é uma língua difícil” o “o brasileiro não sabe falar português”. Fomentar a discussão sobre a atualidade da norma padrão, com uma fundamentação empírica consistente, é o caminho para a Linguística superar o seu isolamento social e alterar a própria concepção hegemônica de língua na sociedade (LUCCHESI, 2015, 2022). Contribuir com esse processo, produzindo uma massa de dados significativa sobre os padrões de comportamento linguístico da elite letrada da cidade de Salvador e sobre o seu sistema de avaliação das variantes linguísticas é o principal objetivo da 4ª Etapa da pesquisa do Projeto Vertentes.

Para cumprir esse objetivo, os pesquisadores do Projeto Vertentes estão constituindo uma amostra linguística com entrevistas sociolinguísticas e falas formais com moradores da cidade de Salvador, com curso superior completo, além de aplicar testes de avaliação subjetiva da variação linguística com esses indivíduos.

4ª Etapa/Amostra

Referências Bibliográficas

BAGNO, M. Gramática pedagógica do português brasileiro. São Paulo: Parábola, 2012.

CALLOU, Dinah. O Projeto NURC no Brasil: da década de 70 à década de 90. Linguística (ALFAL), São Paulo, n.11, p. 231-250, 1999.

CASTILHO, Ataliba. Nova gramática do português brasileiro. São Paulo: Contexto, 2010.

FARACO, Carlos Alberto. Norma Culta Brasileira: desatando alguns nós. São Paulo: Parábola, 2008.

LUCCHESI, Dante. Língua e Sociedades Partidas: a polarização sociolinguística do Brasil. São Paulo: Contexto, 2015.

LUCCHESI, Dante. Ter e haver na norma culta escrita e a questão da norma padrão no Brasil. In: OLIVEIRA, Josane Moreira de; MOTA, Jacyra Andrade; REIS, Rejane Coelho Pereira (org.). Contribuições para a linguística brasileira – uma homenagem a Dinah Callou. Campo Grande, MS: Editora UFMS, 2022. p. 125-144.

VIEIRA, Eduardo; FARACO, Carlos Alberto. Escrever na universidade: gramática da norma de referência. São Paulo: Parábola, 2022.

VIEIRA, Sílvia (org.). Gramática, variação e ensino: diagnose & propostas pedagógicas. São Paulo: Blucher, 2018.

VITRAL, Lourenço. Gramática inteligente do português do Brasil. São Paulo: Contexto, 2017.

PERINI, Mário. Gramática do Português Brasileiro. São Paulo: Parábola, 2010.

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Expediente O responsável por este sítio é o Coordenador do Projeto Vertentes, Dante Lucchesi, autor da maioria dos textos aqui publicados.

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