Em sua segunda etapa, o Projeto Vertentes focalizou o português popular do interior do Estado da Bahia, tendo como base empírica a constituição de amostras de fala vernácula com moradores de pouca ou nenhuma escolaridade de dois municípios que representam realidades diferentes no panorama socioeconômico do Estado da Bahia: Santo Antônio de Jesus e Poções. Essa variedade ocupa uma faixa intermediária entre o português afro-brasileiro, objeto da 1ª Etapa da pesquisa , e o português popular da cidade de Salvador, a capital do Estado, focalizado na 3ª Etapa da pesquisa. Estabelece-se, assim, um continuum que vai desde a variedade mais afastada do padrão e mais afetada pelo contato entre línguas, o português afro-brasileiro, até a variedade popular mais central e mais sujeita ao nivelamento linguístico institucional, o português popular da capital do Estado. O português popular do interior do Estado compreende as variedades populares não marcadas etnicamente e ocupa uma faixa intermediária entre os dois extremos, sofrendo pressões antagônicas: por um lado, a pressão histórica do devir das mudanças induzidas pelo contato linguístico no passado; por outro lado, as mudanças decorrentes da difusão dos padrões linguísticos dos grandes centros urbanos para todas as regiões do país, como previsto no algoritmo da polarização sociolinguística do Brasil de Lucchesi (2015).
...Na análise dessa faixa intermediária, observou-se também o continuum rural-urbano. Dessa forma, as entrevistas sociolinguísticas que constituem as amostras de fala vernácula de cada município foram feitas com moradores da cidade sede do município e moradores da zona rural (ver constituição das amostras de fala). As análises sociolinguísticas dos fenômenos variáveis consideram essa distinção entre o centro urbano e a zona rural para iluminar o processo de nivelamento decorrente da difusão dos modelos linguísticos das grandes cidades para todas as regiões do país, sobretudo por meio da ação niveladora dos meios de comunicação de massa. A hipótese é que esse processo de nivelamento linguístico atinge primeiramente o centro urbano, que é a sede do município, para depois chegar à zona rural. Define-se assim um vetor de propagação das variantes linguísticas de prestígio, a partir dos grandes centros urbanos: os centros urbanos do interior > a zona rural > as comunidades afro-brasileiras isoladas. Esse processo também possui uma dimensão de expansão territorial no plano diatópico, a difusão das formas linguísticas da capital do Estado atingiria as regiões mais próximas e mais interligadas, para depois chegar às regiões mais distantes e menos interligadas. Dessa forma, a hipótese é que as formas do padrão urbano culto estarão mais presentes no português popular do município de Santo Antônio de Jesus, que está mais próximo da capital, numa região historicamente ligada a ela, o Recôncavo Baiano, do que no português popular do município de Poções, situado mais para o interior do Estado, na região do semiárido. A situação socioeconômica também contribui para essa diferenciação linguística. Santo Antônio de Jesus exibe um maior desenvovimento econômico e social, com base em uma vigorosa atividade comercial e de serviços, enquanto Poções não exibe o mesmo dinamismo, estando a sua economia ligada à atividade agropecuária da região.
Em sentido contrário, estão as pressões históricas profundas, que repercutem as mudanças provocadas pelo contato do português com as línguas indígenas e africanas no passado. Esses efeitos, que caracterizam as comunidades rurais afro-brasileiras mais isoladas, também se manifestariam no português das zonas rurais não marcadas etnicamente, em uma intensidade menor do que a observada no português afro-brasileiro. Por outro lado, os efeitos do contato seriam mais notáveis na zona rural, do que no português popular da sede urbana do município.
Dessa forma, o cotejo dos resultados das análises variacionistas entre essas variedades fornece as evidências empíricas para a verificação das hipóteses que orientam a pesquisa no Projeto Vertentes. A comparação dos resultados da análise de um fenômeno variável entre as comunidades afro-brasileiras isoladas (algumas oriundas de antigos quilombos) e da zona rural não marcada etnicamente serve para testar a hipótese da relevância do contato entre línguas. A hipótese é que a transmissão linguística irregular que ocorre no contato entre línguas conduz a uma simplificação morfológica. Assim, se por exemplo, o nível de aplicação das regras de concordância for mais baixo nas comunidades afro-brasileiras do que na zona rural, a hipótese do contato se confirma, porque o contato foi mais profundo e intenso nas primeiras do que na última. Se a análise em tempo aparente também revelar uma tendência de implementação da regra nas duas comunidades, também se obtém uma evidência a favor da hipótese do contato, porque contraria a hipótese da deriva secular de Naro e Scherre (2007), que prevê uma perda gradual das marcas de concordância.
Por outro lado, o cotejo entre os resultados das análises variacionistas da sede do município e da zona rural possibilita a comprovação empírica da difusão dos modelos linguísticos urbanos no processo de nivelamento linguístico em curso no país. A expectativa é que as variantes linguísticas de prestígio, como a aplicação das regras de concordância, sejam mais frequentes no português popular da sede do município do que na zona rural. São esses parâmetros que balizam as análises variacionistas da 2ª Etapa da pesquisa no Projeto Vertentes, que tem por objetivo final traçar um panorama sociolinguístico do português popular do interior do Estado da Bahia.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICASLUCCHESI, Dante. Língua e Sociedade Partidas: a polarização sociolinguística do Brasil. São Paulo: Contexto, 2015.
NARO, Anthony; SCHERRE, Marta. Origens do português brasileiro. São Paulo: Parábola, 2007.