A Polarização Sociolinguística do Brasil
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A mais completa sistematização do algoritmo da polarização linguística do Brasil, criado e desenvolvido por Dante Lucchesi, veio à luz com a publicação do livro Língua e Sociedade Partidas, publicado pela editora Contexto, no ano de 2015, e agraciado com Prêmio Jabuti, no ano seguinte.

Em sua formulação seminal, Labov (2008[1972], p. 158) afirma que: “a comunidade de fala não pode ser concebida como um grupo de falantes que usam as mesmas formas linguísticas; ela é mais bem definida como um grupo que compartilha as mesmas normas em relação à língua”. Se uma comunidade de fala se define pela adoção de um sistema comum de avaliação da variação linguística, o sociolinguista deveria, ao se deparar com grupos sociais que têm sistemas de avaliação diferenciados, defini-los como comunidades de fala distintas. Essa atitude conduziria a uma atomização da comunidade de fala, impedindo a análise de capturar o processo social mais amplo no qual a língua se constitui como entidade histórica, e iria de encontro ao principal objetivo da análise sociolinguística: apreender a heterogeneidade da língua em toda a sua amplitude.

Apesar de destacar a uniformidade dos sistemas de valores como parâmetro para delimitar a comunidade de fala, Labov (1974) reconheceu a existência de sistema valores divergentes na cidade de Nova York, pois “muitos nova-iorquinos brancos gostam do som da fala dos sulistas brancos”, enquanto os falantes negros “gostam de quase qualquer tipo de fala nortista”, e rejeitam os padrões linguísticos característicos do sul. Essas divergências no sistema de avaliação social da variação linguística seria a condição normal de uma sociedade mais complexa, e tais divergências refletiram as diferenças entre as classes sociais, grupos étnicos, gêneros etc; diferenças estas que se projetam no plano das representações simbólicas que se opõem na disputa ideológica e na construção da hegemonia nos sistemas de dominação de classe. Contudo, apesar de reconhecer diferenças na avaliação social da língua no interior de uma mesma comunidade de fala, a teorização laboviana não se mostrou capaz de apreender a correlação entre essas diferenças e as contradições sociais e os conflitos inerentes à disputa ideológica na sociedade, por conta das limitações da teoria social que fundamenta sua concepção de comunidade de fala, como bem observaram James e Lesley Milroy (1997, p. 54-55):

...
O estudo de Labov (1966) na cidade de Nova York procedeu a uma mensuração de covariação da língua com a variação em classes sociais, e as categorias sociais usadas foram importadas da sociologia. Elas dependiam, basicamente, de uma teoria social particular baseada no trabalho de Talcott Parsons (1952), o qual utilizava o conceito de estratificação das classes sociais. Isso envolve classificar indivíduos dentro de uma hierarquia de agrupamentos de classe baseada na ideia de um contínuo do mais alto para o mais baixo, que é a forma mais usual de tratar as classes sociais no Ocidente. Porém, há outras teorias de classe social, tais como as associadas a Marx, que não são estratificacionais, mas que usam um modelo processual de classe social. A classe social é vista como algo que procede de fatores econômicos, tais como os meios de produção e distribuição, e resultam em dois grandes grupos sociais, o proletariado e a burguesia. Enquanto o modelo estratificacional resulta em uma visão de consenso na sociedade, que pressupõe uma concordância geral em torno da hierarquia, o modelo marxista enfatiza crucialmente o conflito entre os diferentes grupos de interesse.

Para esses sociolinguistas, “essa diferença de modelos sociais se reflete na diferença entre um modelo de comunidade de fala baseado no consenso e um modelo de comunidade de fala baseado no conflito”. Diferentemente dos estudos de Labov, que são baseados no modelo do consenso, as pesquisas desenvolvidas por Milroy e Milroy na cidade de Belfast, na Irlanda do Norte, baseiam-se na distinção entre uma normatização linguística institucional, que “resulta da imposição de normas linguísticas pelos grupos sociais que detêm o poder”, através da padronização de uma determinada forma de uso da língua, e o movimento de certos grupos sociais subalternos em torno da manutenção de sua norma de grupo, que Milroy e Milroy denominam normatização vernacular, que se opõe à normatização institucional, pois pressupõe inclusive o reforço, no comportamento linguístico desses grupos, de formas linguísticas que são condenadas pela normatização institucional. “Em estados nacionais, em que há uma consciência da padronização da língua, a normatização vernacular pode resultar no conflito entre duas normas em oposição”. Dessa maneira, fica evidente a diferença em face do modelo laboviano (MILROY; MILROY, 1997, p. 52-53):

Essa ênfase no conflito social é uma das coisas que diferencia [nossa] pesquisa da de Labov, e isso tem óbvias consequências para a caracterização de uma idealizada “comunidade de fala” em que todos os falantes concordam com a avaliação das normas variantes da língua.

O modelo de pesquisa desenvolvido em Belfast busca exatamente apreender a maneira distinta como os grupos sociais avaliam as formas variantes na língua. Isso pode explicar por que formas estigmatizadas pela normatização institucional se mantenham ou até se difundam entre certos grupos sociais. Portanto, o padrão que emerge é o do conflito, e não o do consenso. E esse conflito linguístico deve ser compreendido a luz das disputas ideológicas que são determinadas pelas contradições de classe em torno das formas sociais de produção e distribuição da riqueza.

A teorização desenvolvida por Lucchesi (2015) aproxima-se das formulações de Milroy e Milroy no sentido de apreender os conflitos sociais em torno da língua como parte das disputas ideológicas determinadas pelas contradições sociais. O seu fundamento teórico assenta primacialmente no conceito de norma sociolinguística, que resulta de uma releitura do conceito de norma linguística do Estruturalismo, reformulado com base no instrumental teórico da Sociolinguística (cf., subseção anterior).

Nessa formulação, norma sociolinguística constitui a contraparte linguística dos grupos sociais que formam a comunidade de fala, tomando-se por base estes três parâmetros:

  • a frequência relativa de uso das variantes linguísticas entre os membros de cada grupo social;
  • a avaliação subjetiva das variantes linguísticas comum aos membros de cada grupo;
  • as tendências de mudança em curso em cada grupo social.

Deve-se ressaltar a inter-relação dos parâmetros (ii) e (iii), nos termos do problema da avaliação, na medida em que a implementação de um processo de mudança na comunidade de fala é em grande medida determinada pela forma como os seus membros reagem às variantes linguísticas. A emergência de uma reação negativa, quando os falantes começam a tomar consciência do uso de uma variante inovadora (normalmente proveniente dos estratos sociais mais baixos e de menor prestígio social), tende a inibir o processo de mudança, ao passo que uma variante inovadora que passa a ser avaliada positivamente naquele grupo social tem o seu processo de implementação acelerado, em detrimento da variante conservadora, que perdeu prestígio. Assim, o comportamento de um grupo social que reage uniformemente diante das variantes linguísticas em uso tende a mudar na mesma direção; em contrapartida, outro grupo social que reage de maneira diferente, tenderá a mudar em outra direção, configurando normas sociolinguísticas distintas dentro de uma mesma comunidade de fala.

Essa reflexão teórica conduziu a concepção da polarização sociolinguística do Brasil, baseada na dicotomia entre a norma sociolinguística da elite letrada, por um lado, e a norma da população socialmente marginalizada, por outro. O conceito de norma sociolinguística foi então desenvolvido para capturar o fato de que a oposição sociolinguística entre as classes sociais não se dá apenas em função da diferença no comportamento linguístico dos seus membros, mas igualmente em função da forma como esses membros avaliam os diversos usos da língua e da forma como as mudanças linguísticas se propagam em cada segmento social. Assim, a proposição de uma divisão axial entre uma norma culta, da elite letrada, e uma norma popular, da população mais marginalizada, assentaria teoricamente na consideração desses três parâmetros. Ainda dentro de uma visão social da língua, a estrutura sociolinguística deve ser vista sempre como uma resultante de uma rede de correlações que se estende da infraestrutura socioeconômica à superestrutura político-ideológica.

O Brasil é um dos países de maior concentração de renda do planeta, onde um por cento mais ricos têm a mesma renda da metade da população mais pobre. Essa absurda concentração da renda, fundada na superexploração da força de trabalho dilacera o tecido social e corrompe as instituições, mantendo na periferia das grandes metrópoles hordas de miseráveis que vivem sob a égide da promiscuidade e da violência policial e do crime organizado, instaurando em toda a sociedade um verdadeiro clima de guerra civil. No campo, a exploração desenfreada da terra promove agressões irreversíveis ao meio ambiente, não poupando das mais bárbaras violências as populações pobres que dela tiram o seu sustento há várias gerações, particularmente as populações indígenas. Numa sociedade desigual, enquanto uns poucos privilegiados têm acesso pleno ao consumo suntuário de bens materiais, a todos direitos da cidadania e aos mais valorizados bens simbólicos, boa parte da população vive na pobreza e na miséria, sem acesso aos direitos sociais básicos, dentre os quais a escolarização.

Dentro da abordagem dos condicionamentos sociais da língua aqui adotada, a heterogeneidade da língua reflete as condições sociais do seu uso, bem como garante sua plena funcionalidade no universo da diversidade sociocultural em que é usada (WEINREICH; LABOV; HERZOG, 2006[1968]). A maleabilidade do sistema linguístico produzida pelo mecanismo da variação linguística permite que a língua capture em sua configuração estrutural as diversas nuanças das diferenças sociais, de modo que dialeticamente não é possível compreender a configuração estrutural de uma língua, enquanto fenômeno sócio-histórico, sem compreender a história e a configuração da sociedade em que essa língua é falada. No caso brasileiro, a polarização sociolinguística – opondo os dois polos: da elite letrada, por um lado, e segmentos sociais mais marginalizados, por outro – é, na atualidade, o reflexo inexorável das abissais diferenças materiais e culturais que apartam as classes sociais no país.

Porém, a atual realidade sociolinguístico do Brasil é fruto de um longo processo histórico, cujas raízes remontam ao início da colonização do território brasileiro, quando o colonizador português escravizou muitos povos que falavam centenas de línguas diversas entre si, para compor, por mais de trezentos anos, a força motriz da sociedade brasileira. A divisão da Brasil, a um só tempo socioeconômica e étnica, ao longo do período colonial e do Império, forneceu as bases para a primeira configuração da polarização sociolinguística do país, que opunha o contingente dominador, de falantes nativos da língua portuguesa cujos pais também o eram, da grande massa de explorados, entre os quais a língua portuguesa era segunda língua ou uma variedade de português nativizada através de um processo de transmissão linguística irregular.

O fim do tráfico negreiro, a abolição da escravatura e o ingresso no país de milhões de imigrantes europeus e asiáticos, entre os finais do século XIX e início do século XX, foram esmaecendo os matizes étnicos da polarização sociolinguística. E o processo de industrialização e urbanização da sociedade brasileira, que se inicia efetivamente a partir de 1930, acaba por definir os contornos atuais da polarização sociolinguística do país (LUCCHESI, 2015, 2017). A industrialização promove a urbanização, com a inserção de largos contingentes da antiga população rural no mercado consumidor e no espaço urbano, o que tem, como contraparte linguística, a ampla difusão da variedade de língua socialmente valorizada, que é genericamente denominada norma culta (FARACO, 2008).

Dessa forma, pode-se dizer que a polarização sociolinguística do Brasil foi se atenuando a partir de 1930. Contudo, as características do desenvolvimento tardio e dependente do capitalismo no Brasil fizeram com que a difusão da norma culta fosse muito restrita, quando não precária. No universo cultural da sociedade brasileira contemporânea, a inovação tecnológica convive, lado a lado, com relações sociais tão arcaicas, quanto o trabalho análogo à escravidão. Mais uma vez, a realidade social não poderia deixar de se refletir no plano da língua. Nos bolsões de miséria ao redor das grandes cidades, migrantes rurais preservam, em grande medida, a cultura e a linguagem do campo, ao tempo em que sofrem a avassaladora influência cultural e linguística dos poderosos meios de comunicação de massa. Contradições como essa dão o tom ao complexo cenário da polarização sociolinguística do Brasil.

Na sociedade brasileira contemporânea (dominada pela indústria cultural e a comunicação de massa), a voragem da comunicação instantânea e imediata propaga vertiginosamente imagens, valores e padrões de comportamento linguístico para todos os segmentos sociais em todos os quadrantes do país, promovendo inexoravelmente a sua homogeneização. Se nesse processo opera um nivelamento linguístico que aproxima a fala das classes baixas dos modelos da norma culta, a avaliação social reforça o valor simbólico das diferenças linguísticas, utilizando a clivagem da língua para reforçar a divisão social.

Assim, o conceito de norma sociolinguística se faz necessário para capturar o fato de que a polarização linguística do Brasil é tanto objetiva quanto subjetiva. Assim sendo, esse conceito se funda não apenas nas diferenças no comportamento linguístico das classes altas e baixas, mas também no estigma que se abate sobre as características mais típicas da fala popular, com destaque, no plano da morfossintaxe, para a generalizada falta de concordância nominal e verbal. O valor social atribuído às variantes linguísticas afeta, por sua vez, os padrões coletivos de uso da língua. Assim, a avaliação positiva do emprego das regras de concordância faz com que os indivíduos das classes mais baixas assimilem esse mecanismo sintático, à medida que vão se inserindo no mercado consumidor e no espaço da cidadania. Completa-se, dessa forma, o circuito da relação dialética entre uso, avaliação e mudança linguística.

Embora essa contradição entre norma culta e a norma popular tem um papel central na configuração da realidade sociolinguística do Brasil, outras contradições compõem o complexo mosaico de padrões de uso e avaliação social da língua, como, por exemplo, a contradição entre essa norma culta e a norma institucional de referência linguística, a norma padrão, decorrente de uma flexibilização de usos nos segmentos mais letrados da sociedade, em função da dinamização da cultura, resultante da industrialização e urbanização, bem como da proliferação dos meios de comunicação de massa e do fenômeno da indústria cultural. Tais processos de variação e mudança tendem a aprofundar a tensão entre a norma culta e norma padrão no Brasil, já marcada historicamente pela adoção, no final de século XIX e início do século XX, pela adoção de um modelo de correção gramatical adventício, baseado nos padrões de uso da língua em Portugal, como parte de um projeto de poder e de nação das classes dominantes no país (FARACO, 2008; LUCCHESI, 2015).

Descrever e analisar essas contradições identificadas pelo algoritmo da polarização sociolinguística do Brasil definem centralmente os objetivos da pesquisa empírica desenvolvida no âmbito do Projeto Vertentes.

REFERÊNCIAS

FARACO, Carlos Alberto. Norma Culta Brasileira: desatando alguns nós. São Paulo: Parábola, 2008.

LABOV, William. Padrões Sociolinguísticos. São Paulo: Parábola, 2008[1972].

LUCCHESI, Dante. Língua e Sociedades Partidas: a polarização sociolinguística do Brasil. São Paulo: Contexto, 2015.

LUCCHESI, Dante. A periodização da história sociolinguística do Brasil. D.E.L.T.A., n. 33, v. 2, 2017, p. 347-382

MILROY, James; MILROY, Lesley. Varieties and Variation. In.: COULMAS, Florian (ed.). The Handbook of Sociolinguistics. Oxford: Blackwell, 1997. p. 47-64

WEINREICH, Uriel; LABOV, William; HERZOG, Marvin. Fundamentos empíricos para uma teoria da mudança linguística. São Paulo: Parábola, 2006[1968].

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Expediente O responsável por este sítio é o Coordenador do Projeto Vertentes, Dante Lucchesi, autor da maioria dos textos aqui publicados.

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