A história da humanidade, sobretudo a partir da chamada revolução agrícola, ocorrida há cerca de 15 mil anos na Ásia Menor, é marcada pelo contato entre povos, em muitos casos por meio de guerras, dominação e escravização de uns povos por outros. Há, entretanto, situações menos radicais em que o contato entre povos se dá em função de trocas mercantis e atividades cooperativas ou religiosas. Todas essas situações colocam em contato, mais ou menos estreito, falantes adultos de línguas diferentes, na maioria das vezes ininteligíveis entre si, criando a necessidade de criação de um código linguístico que é usado muitas vezes em situações restritas de comunicação. Um dos mais famosos foi o sabir, língua franca usada na região do Mar Mediterrâneo, na idade média por falantes das línguas da Europa Meridional e do norte da África. O sabir pode ser definido como um pidgin, um código de comunicação emergencial, composto por um vocabulário restrito de uma ou mais línguas, que seus usuários utilizam para formar frases quase desprovidas de marcas gramaticais.
Diversos pidgins têm se formado em situações em que povos se põem em contato, como o chinook jagon, na costa noroeste do Estados Unidos, entre os séculos XVI e XIX, o russenorsk, utilizado por comerciantes russos e pescadores noruegueses, na região do Ártico, até o século XIX, e o fanagalo, utilizado amplamente no século XIX, nas minas de ouro e diamantes, na África do Sul, pelos colonizadores holandeses e ingleses e seus trabalhadores, africanos falantes de línguas bantu, especialmente o zulu. Atualmente, em grandes cidades da Nigéria e Camarões, cujas populações são plurilíngues, se utilizam pidgins de base lexical inglesa para a comunicação cotidiana.
O pidgin se caracteriza por não ser a língua nativa da maioria dos seus falantes. E foram pidgins as línguas que os africanos escravizados desenvolveram nas grandes plantações de cana de açúcar, na região do Caribe, para se comunicar com os colonizadores ingleses, franceses e holandeses, que exploravam violentamente sua força de trabalho. Esses africanos escravizados aprendiam um conjunto limitado de palavras da língua do colonizador europeu (inglês, francês ou holandês) e, como esse vocabulário, construíam frases utilizando progressivamente as regras do sistema gramatical de suas línguas africanas. Inicialmente o pidgin era usado para a comunicação entre colonizadores europeus e africanos e escravizados, porém, com o passar do tempo, esses últimos passavam a usar o pidgin para se comunicarem entre si. Com isso, o pidgin foi se expandindo funcional e gramaticalmente, ao tempo em que ia se tornado a língua materna dos afrodescendentes, que não tinham acesso à(s) língua(s) africana(s) dos seus pais ou avós. Em linhas gerais, esse é o processo que deu origem, entre 1650 e 1750 (aproximadamente), a mais de 30 línguas crioulas que são faladas hoje no Caribe, como o haitiano, língua nativa de mais de 95% da população do Haiti, com quase a totalidade do seu léxico proveniente do francês. Proporção similar se encontra no jamaicano e no guianês, só que de palavras de origem inglesa. O sranan e o saramacan, línguas crioulas do Suriname, combinam uma maioria de palavras de origem inglesa com palavras de origem portuguesa. Porém, todos esses crioulos têm uma gramática e uma fonologia totalmente distintas das línguas europeias das quais receberam o grosso do seu vocabulário, sendo, assim, ininteligíveis para os falantes nativos dessas línguas europeias.
O Brasil recebeu quase a metade dos cerca de dez milhões de africanos que foram trazidos para a América como escravos pelo tráfico negreiro, entre 1550 e 1850 (aproximadamente), e, principalmente no século XVII, nas sociedades açucareiras do Nordeste, haveria condições muito semelhantes àquelas, em que no Caribe se formaram as línguas crioulas mencionadas acima. Contudo, as especificidades da sociedade brasileira inibiram o processo de pidginização e crioulização do português. Entre os fatores que impediram a crioulização no Brasil destacam-se: uma grande proporção de pequenos e médios proprietários, que tinham poucos escravizados (enquanto no Caribe predominaram sempre as grandes empresas agroexportadoras que empregavam centenas de africanos, com umas poucas dezenas de europeus); a maior mestiçagem e assimilação cultural dos filhos africanos (chamados “crioulos”), especialmente os mulatos; a ação da igreja católica, com suas irmandades; e o grande número de alforrias. O fato de o português não ter se crioulizado não significa absolutamente que o contato entre línguas não afetou a formação das atuais variedades da língua portuguesa faladas no Brasil, particularmente as variedades populares. Uma situação semelhante aconteceu na Bolívia e no Peru, países que receberam grandes contingentes de africanos para trabalhar nas minas de prata, mas onde não se formaram também línguas crioulas.1
Para dar conta dessas diferentes situações de contato entre línguas, com seus diferentes resultados, Baxter e Lucchesi (1997 e 2009) cunharam o conceito de transmissão linguística irregular.
O conceito de transmissão linguística irregular tem um caráter gradiente e visa a desenvolver um modelo mais amplo de análise das mudanças linguísticas induzidas pelo contato maciço entre línguas, para além das situações típicas de crioulização. A ideia básica é que uma situação de massivo contato entre línguas pode conduzir à formação de uma língua crioula, que tem uma gramática qualitativamente distinta da língua alvo (ROUGE, 2008), constituindo um caso de transmissão linguística irregular radical, mas pode também gerar apenas variedades históricas da língua dominante com algumas características estruturais das línguas crioulas, porém em um nível menos intenso e mais superficial, caracterizando uma transmissão linguística irregular leve.2
Em ambos os casos, o que está essencialmente em jogo é a necessidade de recomposição das estruturas gramaticais perdidas na situação inicial de contato, com a aquisição precária da língua do grupo dominante (os colonizadores europeus, no caso da América) pelos falantes adultos dos grupos dominados (os africanos escravizados). Portanto, é a intensidade da erosão gramatical da língua dominante, que vai determinar o grau de reestruturação gramatical da variedade linguística que se formará na situação de contato. Para que haja a reestruturação original da gramática, que dá origem às línguas pidgins e crioulas, é preciso que o acesso aos modelos da língua dominante seja demasiadamente restrito durante todo o período de formação dessa nova comunidade de fala, o que aconteceu nas sociedades de plantação do Caribe. Nesses casos, o grupo dominado, muito majoritário, retém um restrito conjunto de itens do léxico da língua dominante (denominada, por isso, língua lexificadora), adquirido inicialmente para a comunicação verbal com os colonizadores, mas que depois passa a servir como código de comunicação interétnica entre os grupos dominados, já que estes falam línguas diversas, normalmente ininteligíveis entre si. Nesse universo da interação entre os dominados, implementa-se a reestruturação gramatical do restrito vocabulário adquirido da língua do colonizador, sem deixar de ocorrer uma profunda alteração na forma fonética das palavras adquiridas. Esse código de comunicação interétnica (BAKER, 2000), denominado tradicionalmente pidgin, é a segunda ou terceira língua da maioria de seus utentes (MÜHLHÄUSLER, 1986). Ao se converter na língua materna das crianças que nascem na situação de contato, torna-se uma língua crioula, que, como toda língua nativa de uma comunidade de fala, é uma língua plena em termos estruturais e funcionais em seu universo cultural próprio, conquanto tenha uma estrutura gramatical incialmente muito simplificada em algumas áreas da gramática (SIEGEL, 2008).
Dessa forma, as línguas crioulas, embora tenham quase todas as suas palavras provenientes da língua do grupo dominante na situação de contato (na imensa maioria dos casos, uma língua europeia), exibe uma estrutura gramatical qualitativamente diversa. Por exemplo, as línguas crioulas expressam os valores das categorias gramaticais de tempo, modo e aspecto por meio de partículas pré-verbais, e não por meio da flexão verbal, como ocorre nas línguas lexificadoras europeias. A gramaticalização desempenha naturalmente um papel crucial na formação das línguas crioulas. Assim, o verbo dar se gramaticaliza para desempenhar a função de preposição de dativo, os verbos discendi (“dizer/falar”) passam a desempenhar também a função de complementizadores (conectores oracionais), e o nome cabeça ou corpo passa a funcionar também como pronome reflexivo. A crioulização pode ser vista também como um processo de simplificação morfológica (MCWHORTER, 1998; 2001). Normalmente, as línguas crioulas utilizam um número muito reduzido de preposições e conjunções, predominando as construções por justaposição; além disso, não possuem flexão de caso dos pronomes pessoais, flexão verbal de número e pessoa e concordância verbal e nominal. Como decorrência dessas alterações, as línguas pidgins e crioulas também exibem algumas mudanças paramétricas em relação às línguas lexificadoras europeias, como a ausência de sujeito referencial nulo e de inversão na ordem sujeito-verbo (ROBERTS, 1997). A recomposição da estrutura gramatical que ocorre na pidginização/crioulização se concentra nos mecanismos que são essenciais ao funcionamento de qualquer língua natural, o que reveste o estudo das línguas crioulas de especial interesse para a compreensão da linguagem humana, pois a língua crioula prototípica possuiria apenas o núcleo gramatical essencial da faculdade da linguagem (BICKERTON, 1981, 1999).
Toda essa reestruturação gramatical que caracteriza a formação das línguas crioulas ocorreu em situações sócio-históricas bem específicas, nas quais os grupos dominados eram altamente segregados e tinham um acesso extremamente restrito aos modelos da língua alvo. As grandes plantações de açúcar do Caribe são consideradas os contextos históricos prototípicos para a ocorrência da pidginização/crioulização (ARENDTS, 2008, SINGLER, 2008). Porém, como argumentando acima, na formação da sociedade brasileira, os falantes dos grupos dominados e seus descendentes tiveram um maior acesso à língua europeia do grupo dominante, o que inibiu a crioulização, mas não impediu a ocorrência de mudanças estruturais decorrentes da aquisição mais ou menos limitada do português como segunda língua por milhões de índios aculturados e africanos escravizados e da nativização desse modelo mais ou menos defectivo de segunda língua entre os seus descendentes mestiços ou endógamos.
Nesse processo de transmissão linguística irregular leve, que determina a formação histórica das atuais variedades populares do português brasileiro, a reestruturação radical da gramática típica da crioulização não teria sido representativa nem duradoura, predominando a transmissão dos mecanismos nucleares da gramática da língua dominante. Porém, não deixou de ocorrer uma reestruturação parcial, com mudanças que afetaram sobretudo os mecanismos gramaticais sem valor informacional, como as regras de concordância nominal e verbal. Observa-se, também aí, uma diferença quantitativa entre esse processo menos intenso de reestruturação e o processo radical da crioulização, pois, neste último, mecanismos gramaticais sem valor informacional são virtualmente eliminados, enquanto na transmissão linguística irregular leve observa-se apenas um amplo processo de variação no uso desses mecanismos gramaticais, sem ocorrer sua eliminação, como acontece até hoje no português popular do Brasil, em que a falta de concordância nominal e verbal não é categórica, mas variável, observando-se, tanto meus filho foi embora, quanto meus filhos foro embora.
O Projeto Vertentes promoveu análises sociolinguísticas desses fenômenos em comunidades quilombolas do interior do Estado da Bahia, numa abordagem em tempo aparente, que busca deslindar processos de mudança em curso na comunidade, com base na observação sincrônica da variação em determinando momento da língua (LABOV, 2008[1972]). Essas análises identificaram uma tendência ao incremento das marcas de concordância, liderados pelos homens, mais jovens que viveram algum tempo fora da comunidade e que tiveram alguma experiência de escolarização (LUCCHESI; BAXTER; RIBEIRO, 2009). Essas mudanças de cima para baixo e de fora para dentro da comunidade quilombola se inserem no amplo processo de nivelamento linguístico, no qual os padrões de fala das elites letradas das grandes cidades brasileira se difundem para todas as classes sociais e para todas as regiões do país, em função da influência vertiginosa dos meios de comunicação de massa, da educação pública (mesmo que precarizada) e pelo deslocamento populacional. Esse nivelamento linguístico, que vai eliminando gradualmente as marcas produzidas pelo contato linguístico no passado, é resultante do profundo processo de industrialização e urbanização da sociedade brasileira que se implementa a partir da revolução de 1930. Porém, essa difusão do padrão linguístico urbano culto esbarra nas limitações do desenvolvimento tardio e dependente do capitalismo brasileiro e do quadro de violenta concentração da renda que ele produziu, o que não permite a plena integração no mercado de trabalho e de consumo das massas egressas das zonas rurais, que se concentram em bolsões de miséria na periferia das grandes cidades, configurando, assim, o quadro atual da polarização sociolinguística do Brasil (LUCCHESI, 2015).
A constatação de que está em curso atualmente uma mudança com a recuperação da morfologia perdida na situação de contato no passado refuta a hipótese de Naro e Scherre (2007) de que esses fenômenos decorrem de uma deriva secular interna à estrutura da língua, pois esta hipótese prevê um lento processo de preda das marcas de concordância, e não o seu incremento, como as pesquisas empíricas têm revelado. Além disso, a observação de fenômenos variáveis mais raros de simplificação morfológica, como a falta de concordância de gênero (e.g., as vezes ‘duece um pessoa, não tem um ambulança) e de não marcação da 1ª pessoa do plural nos verbos (e.g., eu trabalha na roça), que não se observam, em geral nas variedades populares do português brasileiro, mas se observam nas comunidades quilombolas mais isoladas, reforça a relação historicamente motivada entre esses processos de simplificação morfológica mais profundos e o contato do português com as línguas indígenas e africanas que marca a formação da sociedade brasileira.
Portanto, a pesquisa sociolinguística e a historiografia linguística desenvolvidas no Projeto Vertentes revelam que as marcas mais estigmatizadas da fala popular tiveram sua origem na forma como o português foi imposto aos segmentos indígenas e africanos na formação da sociedade brasileira e ainda se mantêm, nos dias atuais, em função da marginalização socioeconômica desses segmentos. Sua erradicação passa pela real democratização da sociedade brasileira, facultando a esses segmentos marginalizados o pleno acesso ao mercado de trabalho e de consumo nomeadamente de bens simbólicos e culturais. E nada justifica o preconceito contra essas formas linguísticas, que nada mais são do que o reflexo do caráter pluriétnico da sociedade brasileira, a não ser o preconceito e o racismo de uma elite e uma classe média retrógradas e escravistas.
NOTAS
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