A Teoria da Variação Línguística

A Sociolinguística tem por objeto de estudo os padrões de comportamento linguistico observáveis dentro de uma comunidade de fala e os formaliza analiticamente através de um sistema heterogêneo, constituído por unidades e regras variáveis. Esse modelo visa a responder a questão central da mudança linguística a partir de dois princípios teóricos fundamentais: (i) o sistema linguístico que serve a uma comunidade heterogênea e plural deve ser também heterogêneo e plural para desempenhar plenamente as suas funções; rompendo-se assim a tradicional identificação entre funcionalidade e homogeneidade; (ii) os processos de mudança que se verificam em uma comunidade de fala se atualizam na variação observada em cada momento nos padrões de comportamento linguístico observados nessa comunidade, sendo que, se a mudança implica necessariamente variação, a variação não implica necessariamente mudança em curso (cf. LABOV, 1972, 1974 e 1982 e 1994; e WEINREICH, LABOV e HERZOG, 1968).

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Assim, os processos de mudanças contemporâneas que ocorrem na comunidade de fala são primordiais na Sociolinguística. Comunidade de fala para esse modelo teórico-metodológico não é entendida como um grupo de pessoas que falam exatamente igual, mas que compartilham traços linguísticos que distinguem seu grupo de outros; comunicam relativamente mais entre si do que com os outros e, principalmente compartilham normas e atitudes diante do uso da linguagem. (cf. LABOV, 1972; GUY, 2000).

Dessa forma, para os sociolinguistas, nas comunidades de fala, frequentemente, existirão formas linguísticas em variação, isto é, formas que estão em coocorrência (quando duas formas são usadas ao mesmo tempo) e em concorrência (quando duas formas concorrem). Daí ser a Sociolinguística Variacionista também denominada de Teoria da Variação.

Toda a análise sociolinguística passa então a ser orientada para as variações sistemáticas, inerentes ao seu objeto de estudo, a comunidade de fala, concebidas como uma heterogeneidade estruturada. Não existe, portanto, um caos linguístico, cujo processamento, análise e sistematização sejam impossíveis de serem processados. Há, pelo contrário, um sistema (uma organização) por trás da heterogeneidade da língua falada.

As formas em variação recebem o nome de "variantes linguísticas". Tarallo (1986, p. 08) afirma que: "variantes linguísticas são diversas maneiras de se dizer a mesma coisa em um mesmo contexto e com o mesmo valor de verdade. A um conjunto de variantes dá-se o nome de variável linguística". Essas variáveis subdividem-se em variáveis linguísticas dependentes e independentes. A variável dependente é o fenômeno que se objetiva estudar; por exemplo, a aplicação da regra de concordância nominal, as variantes seriam então as formas que estão em competição: a presença ou a ausência da regra de concordância nominal. O uso de uma ou outra variante é influenciado por fatores linguísticos (estruturais) ou sociais (extralinguísticos). Tais fatores constituem as variáveis explanatórias ou independentes.

Nesse sentido, a Teoria da Variação considera a língua em seu contexto sócio-cultural, uma vez que parte da explicação para a heterogeneidade que emerge nos usos linguísticos concretos pode ser encontrada em fatores externos ao sistema linguístico e não só nos fatores internos à língua. Portanto, como observou Mollica (2003, p. 10), "ela parte do pressuposto de que toda variação é motivada, isto é, controlada por fatores de maneira tal que a heterogeneidade se delineia sistemática e previsível".

Desse modo, um estudo sociolinguístico visa à descrição estatisticamente fundamentada de um fenômeno variável, tendo como objetivo analisar, apreender e sistematizar variantes linguísticas usadas por uma mesma comunidade de fala. Para tanto, calcula-se a influência que cada fator, interno ou externo ao sistema linguístico, possui na realização de uma ou de outra variante. Ao formalizar esse cenário, a análise sociolinguística busca estabelecer a relação entre o processo de variação que se observa na língua em um determinado momento (isto é, sincronicamente) com os processos de mudança que estão acontecendo na estrutura da língua ao longo do tempo (isto é, diacronicamente).

Variação estável ou mudança em curso?

Através da análise das variáveis sociais, busca-se definir o quadro de variação observado na comunidade de fala nos termos da dicotomia entre variação estável e mudança em progresso. No primeiro caso, conclui-se que o quadro de variação tende a se manter ainda por um longo período, já que não se verifica uma tendência de predominância de uma variante linguística sobre a(s) outra(s). Já o diagnóstico de mudança em progresso implica que o processo de variação caminha para a sua resolução em favor de uma das variantes identificadas, que deve se generalizar, tornando-se o seu uso praticamente categórico dentro da comunidade de fala. Nesse quadro, a(s) outra(s) variante(s) tenderia(m) a cair em desuso.

Assim, correlacionando a estrutura linguística variável com fatores da estrutura social, poder-se-ia observar como uma determinada variante estaria se difundindo entre os diversos segmentos sociais, no que se definiu como uma das faces do problema da transição – ing. transition problem. Por outro lado, através de testes de julgamento subjetivo, poder-se-ia aferir a reação dos falantes diante dos valores da variável observada, de modo a se definir a tendência de mudança que essa avaliação social favoreceria, no que foi denominado problema da avaliação – ing. evaluation problem. Tais informações, juntamente com as informações relativas ao encaixamento da variável na estrutura linguística da comunidade de fala, teriam um papel capital para o esclarecimento acerca de como a postulada mudança chegaria a sua consecução, no que foi denominado de problema da implementação – actuation problem (cf. WEINREICH, LABOV e HERZOG, 1968; e LABOV, 1972 e 1982). Nesse sentido, a grande questão é avaliar se um determinado cenário de variação tende a se resolver em função de uma determinada variante, efetivando-se a mudança linguística, ou se as variantes identificadas tendem a se manter no uso linguístico da comunidade, dentro de uma estratificação específica, o que caracterizaria a variação estável.

O estudo da mudança linguística em tempo aparente

A possibilidade de se fazer inferências acerca do desenvolvimento diacrônico da língua a partir de análises sincrônicas ganhou corpo na pesquisa linguística com os estudos desenvolvidos por William Labov na década de 1960, primeiramente na ilha de Martha’s Vineyard, em 1963, e depois na cidade de Nova York, em 1966. Como afirmaria o próprio Labov (1972), concebendo a variação linguística como um fenômeno sistemático, e não aleatório, através da correlação entre fatores linguísticos e fatores sociais, poder-se-ia superar a barreira erguida pelos estruturalistas americanos de que a mudança linguística não poderia ser observada em seu processo de implementação, mas apenas em seus resultados finais. Fundamentalmente, postula-se que a variação observada sincronicamente em um determinado ponto da estrutura da gramática de uma comunidade de fala pode refletir um processo de mudança em curso na língua, no plano diacrônico. Desse modo, busca-se apreender o tempo real, onde se dá desenvolvimento diacrônico da língua, no chamado tempo aparente. O tempo aparente constitui, assim, uma espécie de projeção.

O pressuposto central do tempo aparente é o de que as diferenças no comportamento linguístico de gerações diferentes de falantes num determinado momento refletiriam diferentes estágios do desenvolvimento histórico da língua:

A validade do [tempo aparente] depende crucialmente da hipótese de que a fala das pessoas de 40 anos hoje reflete diretamente a fala das pessoas de 20 anos há 20 anos atrás e pode, portanto, ser comparada com a fala das pessoas de 20 anos de hoje, para uma pesquisa da difusão da mudança linguística. As discrepâncias entre a fala das pessoas de 40 e 20 anos são atribuídas ao progresso da inovação linguística nos vinte anos que separam os dois grupos. (CHAMBERS e TRUDGILL, 1980, p. 165)

Mas, como reconhecem os próprios Chambers e Trudgill (idem, ibidem), "a relação entre tempo aparente e tempo real pode ser de fato mais complexa do que a simples equiparação dos dois sugere". Realmente, a projeção (ou equivalência) do que se observa no tempo aparente para o que teria se passado no tempo real apoia-se no pressuposto de uma estabilidade do sistema, o que significa dizer que o padrão linguístico fixado por um indivíduo na adolescência ou pré-adolescência se conserva mais ou menos intacto pelo resto de sua vida; só assim podemos imaginar que o padrão depreendido do comportamento linguístico dos falantes de 60 anos de hoje corresponderia a padrão fixado na comunidade há 40 anos (LABOV, 1981, 180-1; e NARO, 2003, p. 43-50). Porém, não se pode ter absoluta segurança a respeito disso, e, pelo menos até o início da década de 1990, esse pressuposto básico do conceito de tempo aparente ainda não havia sido plenamente testado (LUCCHESI, 2001).

Por outro lado, nada pode assegurar que uma tendência de mudança identificada pelo linguista num determinado momento não será revertida num futuro próximo em decorrência de novos fatos que não estavam presentes no momento em que o linguista fez o seu diagnóstico. Em função desse caráter contingencial dos processos históricos, "qualquer afirmação sobre a mudança [em progresso] é evidentemente uma inferência" (LABOV, 1981, p. 177). Esse prognóstico entre mudança em curso e variação estável baseia-se na combinação dos resultados obtidos através da correlação da variável linguística estudada com as variáveis sociais.

As variáveis sociais na caracterização dos processos de variação e mudança

As pesquisas sociolinguísticas tem buscado traçar um perfil da mudança em progresso e um perfil da variação estável através da combinação dos resultados das variáveis idade, sexo, classe social e nível de escolaridade, a partir da noção de prestígio. No que concerne à faixa etária, a variação estável se caracterizaria por um padrão curvilinear, no qual as faixas intermediárias apresentariam a maior frequência de uso das formas de prestígio; já na mudança em progresso, a distribuição seria inclinada, com os mais jovens apresentando a maior frequência de uso das formas inovadoras (cf. CHAMBERS e TRUDGILL, 1980, p. 91-3). Mas a tendência aferida pelos resultados da faixa etária deve ser confirmada pelos resultados das outras variáveis sociais.

Assim, um cenário em que os falantes das classes mais altas e de maior nível de escolaridade exibem proporcionalmente uma maior frequência de uso das formas de prestígio do que o falantes da classe média (e estes, por sua vez, uma maior frequência do que os da classe baixa) apontaria para uma situação de variação estável; enquanto que os processos de mudança tendem a ser liderados pelos indivíduos mais integrados da classe média baixa e/ou das seções mais elevadas da classe operária (cf. LABOV, 1982, p. 77-8).

No que concerne à variável sexo, nas situações de variação estável, as mulheres tendem a ser mais sensíveis ao uso das formas de prestígio, o que pode ser aferido numa escala de níveis de formalidade da fala. Por outro lado, nas mudanças em que se abandona o uso de uma forma padrão, o processo tende a ser liderado pelos homens, enquanto que as mulheres lideram as mudanças em direção às formas de prestígio (cf. CHAMBERS e TRUDGILL, 1980, p. 97-8). Já Labov (1982, p. 78) afirma genericamente que "na maioria das mudanças linguísticas, as mulheres estão à frente dos homens na proporção de uma geração". Porém, como bem notou Scherre (1988, p. 429), "a respeito da variável sexo, pode-se ver na literatura linguística que o seu papel, especialmente do sexo feminino, na questão da mudança não é muito claro". E, como reconhece o próprio Labov (1981, p. 184):

Mas é importante ter em mente que essa propensão das mulheres para as formas de maior prestígio (no sentido do padrão normativo) é limitada àquelas sociedades em que as mulheres desempenham um papel na vida pública. Um tendência contrária foi encontrada em Teerã por Modaressi (1977) e Jain, na Índia (1975).

Nesse sentido, é bom destacar que a maioria das conclusões apresentadas acima se referem a processos de variação/mudança ocorridos nos grandes centros urbanos de países com alta grau de industrialização, como o Canadá, os Estados Unidos e a Inglaterra. É preciso que se faça uma análise crítica desses parâmetros, evitando a sua aplicação mecânica a realidades sócio-culturais totalmente distintas, como a de comunidades rurais, em um país com um desenvolvimento industrial tardio e dependente como o Brasil.

No caso da variável sexo, por exemplo, os resultados das análises sociolinguísticas realizadas sobre comunidades rurais e da periferia das grandes cidades exibem resultados totalmente distintos daqueles observados nas sociedades urbanas industrializadas. No caso das comunidades rurais brasileiras, os homens tendem a liderar os processos de mudança em direção às formas de prestígio. Isso porque são eles que têm mais contato com o mundo exterior dos grandes centros urbanos por estarem mais integrados no mercado de trabalho. Já as mulheres, na maioria das vezes circunscritas ao universo doméstico e de trabalho na roça, tendem a conservar mais as formas da fala rural, bem distantes do padrão urbano culto.

É sempre bom repetir que a caracterização de um processo de variação estável ou de mudança em curso independe dos resultados isolados de cada variável social, ela deve apoiar-se fundamentalmente na coerência argumentativa da representação que o linguista constrói do processo como um todo, a partir das evidências empíricas fornecidas pelos resultados de cada variável (cf. LUCCHESI, 2004, p. 189-193). É esse o entendimento que orienta as análises sociolinguísticas desenvolvidas no âmbito do Projeto Vertentes.

REFERÊNCIAS

CHAMBERS, J. K.; TRUDGILL, Peter (1980). Dialectology. Cambridge: Cambridge University Press.

GUY, Gregory (2000). A identidade linguística da comunidade de fala: paralelismo interdialetal nos padrões linguísticos, Organon, 14(28-9): 17-32.

LABOV, William (1972). Sociolinguistic Patterns. Philadelphia: University of Pennsylvania Press. [Padrões Sociolinguísticos. Trad.: Marcos Bagno; Marta Scherre e Caroline Cardoso. São Paulo: Parábola, 2008.]

LABOV, William (1974). Estágios na aquisição do inglês standard. In.: FONSECA, M. e NEVES, M. (orgs.). Sociolinguística. Rio de Janeiro: Eldorado.

LABOV, William (1981). What can be learned about change in progress from synchrony descriptions. In: SANKOFF, David; CEDERGREN, Henrietta (Ed.). Variation Omnibus. Carbondale; Edmonton: Linguistic Research, p.177-199.

LABOV, William (1982). Building on Empirical Foundations. In: Lehmann, W. & Malkiel, Y. (eds.) Perspectives on Historical Linguistics. Amsterdam: John Benjamins: 17-92.

LABOV, William (1994). Principles of Linguistic Change. Oxford/Cambridge: Blackwell.

LUCCHESI, Dante (2001). O tempo aparente e as variáveis sociais. Boletim da ABRALIN, v.26, p.135-137, Número especial.

LUCCHESI, Dante (2004). Sistema, Mudança e Linguagem. São Paulo: Parábola.

MOLLICA, Cecília (2003). Fundamentação teórica: conceituação e delimitação. In.: MOLLICA, Cecília; BRAGA, Maria Luiza (orgs.). Introdução à Sociolinguística: o tratamento da variação. São Paulo: Contexto, p. 9-14.

NARO, Anthony (2003). O dinamismo das línguas. In.: MOLLICA, Cecília; BRAGA, Maria Luiza (orgs.). Introdução à Sociolinguística: o tratamento da variação. São Paulo: Contexto, p. 43-51.

SCHERRE, Maria Marta Pereira (1988). Reanálise da concordância nominal em português. Tese (Doutorado em Letras) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.

TARALLO, Fernando (1986). A Pesquisa Sociolinguística. São Paulo: Ática.

WEINREICH, Weinreich; LABOV, William; HERZOG, Marvin. (1968). "Empirical Foundations for Theory of Language Change". In: LEHMANN, Paul; MALKIEL, Yakov. (eds.) Directions for Historical Linguistics. Austin: University of Texas Press: 95-188. [Fundamentos empíricos para uma teoria da mudança linguística. Trad.: Marcos Bagno; revisão técnica: Carlos Alberto Faraco. São Paulo: Parábola, 2006.]

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Expediente O responsável por este sítio é o Coordenador do Projeto Vertentes, Dante Lucchesi, autor da maioria dos textos aqui publicados.

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