O Projeto Vertentes do Português no Estado da Bahia foi criado em 2002 e está sediado desde então no Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia (UFBA), com registro no Diretório dos Grupos de Pesquisa do CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/3718434503599298 . É coordenado pelo seu criador, o Prof. Dr. Dante Lucchesi, Professor Titular de Língua Portuguesa da UFF e Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq, nível 1-B. Desde sua criação, o projeto tem sido implementado com recursos obtidos junto a editais públicos de apoio à pesquisa da FAPESB e do CNPq. Sua equipe é composta pelos pesquisadores: Cristina Figueiredo, Gredson dos Santos, da UFBA, e Ísis Barros, da UFRB. Também participam da pesquisa mestrandos e doutorandos do Programa de Pós-Graduação em Língua e Cultura da UFBA (PPGLinC – UFBA), e estudantes de graduação com bolsa de Iniciação Científica.
O Projeto Vertentes tem como objetivo central traçar um panorama sociolinguístico do Estado da Bahia, com base no algoritmo da polarização sociolinguística do Brasil, desenvolvido por seu coordenador. Segundo esse algoritmo, a linguagem da elite letrada, ou norma culta, em um estremo, e a linguagem as classes sociais marginalizadas, a norma popular, no outro extremo, constituem os dois grandes polos da realidade sociolinguística do país, como um reflexo, no plano da língua, da enorme concentração de renda, da superexploração do trabalho e da marginalização socioeconômica que predominam no Brasil. A oposição entre esses dois polos se dá, não apenas na diferença entre o comportamento linguístico da elite letrada e o comportamento linguístico das classes populares, mas também na forma como os membros de cada grupo avaliam as formas da língua em variação. Além disso, os padrões de comportamento linguístico de cada um desses dois grandes grupos estão mudando em sentidos diferentes. A linguagem da elite letrada está se afastando da norma padrão, composta pelos modelos linguísticos prescritos pela tradição gramatical, embora os membros da elite letrada rejeitem as formas mais típicas da linguagem popular. Já nas classes populares, observa-se uma assimilação das formas linguísticas mais valorizadas da norma culta, em função de um crescente acesso dos membros mais jovens da classe trabalhadora à escolarização, à Internet e aos meios de comunicação de massa. Esse nivelamento linguístico, estaria suprimindo as marcas produzidas pelo contato do português com as línguas indígenas e africanas no passado.
Nos quatro primeiros séculos de formação da sociedade brasileira, cerca de 2/3 da população do Brasil era composta por africanos escravizados e índios aculturados, falantes de centenas de línguas distintas. Devido à opressão escravista, índios e africanos eram obrigados a se comunicar na língua do colonizador, que ia se tornando a língua materna de seus descendentes endógamos e mestiços. Esse processo de nativização do português falado como segunda língua pelos indígenas e africanos está na base da formação das atuais variedades populares da língua portuguesa no Brasil. Como os africanos e indígenas geralmente adquiriam o português em situações bem adversas e precárias, a língua que passavam para seus descendentes exibia uma forte simplificação morfológica, que afeta sobretudo os mecanismos gramaticais sem valor informacional, como as regras de concordância nominal e verbal (e.g., meus filho trabalha muito ao invés de meus filhos trabalham muito). O preconceito linguístico contra essas formas da linguagem popular tem, portanto, uma motivação historicamente racista e constitui um poderoso instrumento de dominação ideológica, que visa a legitimar as relações de exploração do trabalho e marginalização social que rasgam hoje a sociedade brasileira.
Para analisar essa realidade social da língua, o Projeto Vertentes utiliza o instrumental teórico e metodológico da Sociolinguística Variacionista , desenvolvendo análises de processos de variação e mudança em curso nas variedades do português no Estado da Bahia, a partir de uma sólida básica empírica. Para isso, o projeto constituiu um dos mais expressivos acervos da fala popular do país, reunindo mais de 200 horas de conversação espontânea de falantes com pouca ou nenhuma escolaridade de várias idades, e está implementando atualmente a coleta de uma amostra linguística junto a falantes com nível superior de escolaridade, para possibilitar análises contrastivas dessa amostra da norma culta com as amostras da norma popular já constituídas.
Ao longo de mais de vinte anos, as pesquisas do Vertentes têm sido desenvolvidas em diferentes etapas: na primeira etapa , foi focalizada a fala das comunidades rurais afro-brasileiras isoladas, muitas delas oriundas de antigos quilombos, com o objetivo primacial de identificar os efeitos históricos do contato do português com as línguas africanas. Nesta etapa, o Projeto reuniu um total de 48 entrevistas coletadas em quatro comunidades quilombolas , situadas em diferentes regiões do Estado da Bahia. Um conjunto significativo de análises produzidas nessa primeira etapa foi publicado no livro O Português Afro-Brasileiro. Na segunda etapa , o Projeto fez análises da variação em aspectos da morfossintaxe do português popular do interior do Estado, para aferir os processos de difusão linguística em curso no interior do país. Nessa etapa, foram constituídas amostras de fala vernácula nos municípios de Santo Antônio de Jesus e Poções, tanto na sede urbana de cada um dos municípios, quanto em sua zona rural. Na terceira etapa, o projeto focalizou o português popular da cidade de Salvador e região metropolitana, para escrutinar os processos de variação e mudança em curso na norma popular desse centro de irradiação linguística. Foram constituídas cinco amostras de fala, nessa terceira fase da pesquisa, quatro em bairros populares da cidade de Salvador (Liberdade, Plataforma, Itapuã e Cajazeiras) e uma em um município de sua região metropolitana (Lauro de Freitas).
Nessas três primeiras fases, o Projeto Vertentes traçou um panorama sociolinguístico do português popular do Estado da Bahia, descrevendo o processo de nivelamento linguístico, no qual as formas da norma culta se expandem de cima para baixo na estrutura social e se difundem a partir dos grandes centros urbanos para todas as regiões do país. Nesse nivelamento, as variantes linguísticas de maior prestígio social vão-se sobrepondo às variantes da linguagem popular que resultaram de mudanças induzidas pelo contato entre línguas no passado. Tais mudanças afetariam primeira e mais intensamente a linguagem popular da capital e se propagariam para o interior do Estado, atingindo incialmente a população das cidades do interior, antes da população da zona rural, até chegar às comunidades rurais afro-brasileiras isoladas, aquelas que ainda conservariam os efeitos mais notáveis do contato do português com as línguas africanas.
Em março de 2020, o Projeto Vertentes deu início à quarta etapa de sua pesquisa empírica , tendo como primeiro grande objetivo constituir uma amostra linguística com falantes da cidade de Salvador com nível de escolaridade superior completo, contemplando a variação estilística e aplicando testes de avaliação subjetiva da variação linguística
A constituição dessa sólida base empírica permitirá ao Projeto Vertentes elaborar um amplo panorama da realidade sociolinguística do Estado da Bahia, contribuindo para o avanço do conhecimento de uma dimensão crucial da cultura do país: a língua. O conhecimento sistematizado nesta ampla pesquisa científica poderá contribuir com subsídios para o desenvolvimento do ensino de língua portuguesa que contemple a pluralidade de usos da língua. A diversidade linguística faz parte do patrimônio cultural da sociedade brasileira, pois as diferentes formas de falar refletem sua diversidade social e cultural. A difusão de uma visão realista e pluralista da língua, impedindo que as pessoas sejam discriminadas por sua legítima forma de falar, torna-se, assim, uma importante frente na construção de uma sociedade mais justa, tolerante e verdadeiramente democrática.